[CRÍTICA] EMMANUELLE (Remake): o desejo sob novo olhar, entre película e pele
- Manu Cárvalho
- 26 de abr.
- 5 min de leitura
LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

Poucas personagens femininas do cinema causaram tanto impacto — e também tanta polêmica — quanto Emmanuelle. Desde sua estreia em 1974, a figura da mulher em busca de prazer e liberdade sexual passou a habitar o imaginário coletivo com igual dose de fascínio e desconforto. Quase cinco décadas depois, Audrey Diwan, a diretora de “O Acontecimento”, decide revisitar esse ícone do erotismo com um olhar atualizado, mais íntimo, político e, acima de tudo, profundamente humano.
O resultado é "Emmanuelle" (Remake), uma obra que abraça o erotismo sem culpa, mas também sem voyeurismo. Um filme que se despe — literalmente e metaforicamente — diante do espectador, e nos convida a reavaliar o que entendemos por prazer, autonomia e sensualidade no século XXI.
Sinopse: A jornada de uma mulher em busca do próprio corpo
A nova versão de Emmanuelle acompanha Noémie Merlant no papel-título, como uma mulher que decide se afastar de sua vida previsível na Europa para embarcar em uma experiência de redescobrimento no Sudeste Asiático. Longe do marido, da rotina e dos códigos sociais que a moldaram, ela encontra em um retiro sensorial a chance de se reconectar com seu desejo — não como resposta a um olhar masculino, mas como um processo de autoconhecimento.
Ao longo de sua jornada, ela conhece Thomas (interpretado por Will Sharpe), um homem enigmático e curioso, e Elizabeth (Naomi Watts), uma mentora moderna que questiona tanto os modelos patriarcais quanto os discursos feministas já cristalizados. O filme não apresenta antagonistas, e sim dilemas. Emmanuelle não precisa escapar de uma prisão. Ela precisa entender se já não se habituou a viver dentro dela.
Audrey Diwan: a diretora que filma a pele como quem filma o pensamento
Após conquistar o Leão de Ouro em Veneza por L'Événement (O Acontecimento), Audrey Diwan se consolidou como uma das vozes mais contundentes do cinema francês contemporâneo. Sua marca é clara: ela não tem interesse em agradar. Seu foco é provocar, mas com sensibilidade. Em Emmanuelle, essa assinatura fica ainda mais evidente.
Diwan filma o corpo feminino com uma delicadeza rarefeita no gênero erótico. Não há planos gratuitos, nem sequências pensadas para o deleite externo. A câmera aproxima-se dos poros, dos detalhes, dos arrepios — como se buscasse compreender o desejo a partir de dentro. Em vez de encenar a mulher como fetiche, ela a mostra como sujeito. Não é o corpo que é erotizado; é o gesto de tocá-lo, de escutá-lo, de aceitá-lo como centro do próprio prazer.

Noémie Merlant: força, vulnerabilidade e complexidade em cena
Reconhecida por sua atuação em Retrato de uma Jovem em Chamas, Noémie Merlant entrega aqui uma das performances mais corajosas de sua carreira. E não, não se trata apenas de nudez. Trata-se de entrega emocional. Sua Emmanuelle é curiosa, mas não impulsiva. É sensível, mas não submissa. É contraditória — como qualquer ser humano que busca entender o que sente e por quê.
Merlant domina cada gesto com intenção. Em uma cena particularmente marcante, Emmanuelle observa seu reflexo em um espelho enquanto se toca pela primeira vez sem culpa. O olhar é de surpresa, quase de estranhamento. Como se finalmente enxergasse uma parte de si que sempre esteve ali, mas que nunca foi nomeada. Esse é o tipo de atuação que não se impõe. Ela convida.
Erotismo sem voyeurs: uma revolução silenciosa
Em um gênero historicamente dominado por olhares masculinos, é notável como Emmanuelle evita as armadilhas do erotismo tradicional. A narrativa rejeita os binarismos fáceis entre libertação e opressão. A sexualidade da protagonista não é militante nem transgressora no sentido clássico. É uma construção — lenta, complexa, às vezes frustrante.
O filme desconstrói, por exemplo, a ideia de que o prazer feminino está ligado à conquista masculina. Em vez disso, propõe uma série de encontros (sexuais e afetivos) que revelam a Emmanuelle não o que ela quer, mas o que ela tolerava. E é nesse ponto que a obra atinge sua maior potência: quando faz do erotismo um campo de reflexão política e existencial.

Will Sharpe e Naomi Watts: coadjuvantes que enriquecem a narrativa
Will Sharpe, conhecido por seu trabalho em The White Lotus e Giri/Haji, constrói um Thomas sedutor, mas frágil. Seu personagem não funciona como o “macho salvador” — pelo contrário. Ele também está em busca. Ele também se perde. E é nesse espelhamento entre homem e mulher que o filme ganha espessura.
Naomi Watts, por sua vez, aparece em menos cenas, mas sua presença é magnética. Ela encarna uma espécie de consciência do feminino contemporâneo: lúcida, cética, mas também generosa. É dela a fala que parece resumir o espírito do filme: “Desejar não é um ato de coragem. É um ato de escuta.”
Fotografia e trilha sonora: sentidos em estado bruto
Visualmente, Emmanuelle é um espetáculo. Mas não no sentido comercial do termo. A fotografia de Josée Deshaies investe em tons naturais, sombras reais e luzes cruas. A câmera se aproxima do corpo como quem se aproxima da alma — com cuidado, com receio, com reverência.
A trilha sonora, assinada por Rob, é quase imperceptível. São sons que surgem entre uma respiração e outra. Entre um toque e uma hesitação. A ausência de música em momentos cruciais reforça o realismo das cenas. O silêncio, aqui, fala.
Representatividade e interseccionalidade: o erotismo pluralizado
Diferente de sua versão dos anos 70, este Emmanuelle não é centrado apenas em corpos brancos e normativos. O elenco é diverso, os cenários são internacionais, e os dilemas são abordados de forma interseccional. Há espaço para diferentes expressões de sexualidade, gênero e afetividade. Mas tudo isso sem didatismo. O que Audrey Diwan propõe não é um manual da nova moral. É uma cartografia de desejos em transformação.

Crítica e recepção: o erotismo está de volta — mas com inteligência
Desde sua estreia nos festivais de Veneza e Toronto, Emmanuelle dividiu opiniões — como todo bom filme deveria. Parte da crítica se encantou com a sensibilidade da abordagem e com a atuação de Merlant. Outros questionaram a lentidão do ritmo ou a falta de clímax narrativo. Mas uma coisa é certa: o filme não passou despercebido.
Em publicações como Cahiers du Cinéma, The Guardian e Sight & Sound, o longa foi descrito como “um manifesto do prazer como linguagem política”. Já no Brasil, críticas publicadas em veículos como Papo de Cinema e Mulheres do Audiovisual elogiaram a ousadia estética e a profundidade emocional da obra.
Emmanuelle: Um filme que nos convida a reescrever o mapa do desejo
Emmanuelle não é um remake. É uma reescrita. Uma tentativa de devolver à mulher o protagonismo sobre seu corpo e sua narrativa. Um filme que entende que o erotismo não é o que mostramos, mas o que sentimos. Que o prazer não é espetáculo — é experiência.
Ao final da sessão, talvez você não saiba definir o que sentiu. E isso é ótimo. Porque, como Emmanuelle aprende ao longo da trama, nem tudo o que nos toca precisa ser explicado. Algumas coisas só precisam ser vividas.
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