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[CRÍTICA] Hurry Up Tomorrow: Quando o ego performático cala a alma de um artista

  • Foto do escritor: Manú Cárvalho
    Manú Cárvalho
  • 16 de mai.
  • 5 min de leitura

LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho


Hurry Up Tomorrow
Cena de 'Hurry Up Tomorrow', filme de The Weeknd — Foto: Divulgação

Existe um ponto da fama onde a realidade se dissolve. Onde o aplauso ecoa tanto que ensurdece. Onde a imagem refletida no espelho parece mais real do que quem a sustenta. É nesse território ambíguo e perigoso que “Hurry Up Tomorrow: Além dos Holofotes” decide se aventurar — ou ao menos tenta. Dirigido por Trey Edward Shults e protagonizado por Abel Tesfaye, mais conhecido como The Weeknd, o longa é um mergulho estilizado na espiral emocional de um artista em colapso. Mas por trás da estética envolvente e da trilha sonora pulsante, há uma narrativa que tropeça em seus próprios labirintos, perdendo potência justamente onde mais prometia: na alma do protagonista.


O filme começa com intensidade. Em uma cena de palco, o personagem de Tesfaye — cujo nome nunca é dito, uma tentativa talvez de generalizar sua persona artística — está prestes a iniciar uma grande apresentação. Mas ao abrir a boca, o som não vem. O que se segue é uma sequência onírica e inquieta que mistura música, flashes de multidão, espelhos quebrados e um olhar perdido. O artista está em crise. Não apenas vocal, mas existencial. Sem voz, ele perde o que o torna “ele”. E essa ausência o lança numa jornada caótica em busca de sentido — ou ao menos de alguma coisa que o tire do silêncio ensurdecedor de quem já teve tudo e agora não sabe mais quem é.


Hurry Up Tomorrow
Jenna Ortega interpreta Anima em 'Hurry Up Tomorrow', filme de The Weeknd — Foto: Divulgação

É nesse estado que ele conhece Anima, interpretada por Jenna Ortega com um misto de fragilidade e provocação. Ela não é uma musa, nem exatamente uma antagonista. É mais como um reflexo torto da própria psique dele — alguém que vê nele o que ele já esqueceu de enxergar. Eles se encontram numa boate, num quarto de hotel, num campo aberto em que o céu parece tão pesado quanto as palavras não ditas. Há uma energia estranha entre os dois, que o filme tenta vender como tensão sexual, mas que funciona melhor como ruído emocional. São dois corpos tentando se comunicar sem idioma em comum. E é nessa tentativa de conexão que “Hurry Up Tomorrow” apresenta suas passagens mais honestas.


Barry Keoghan aparece como o agente do cantor, um homem que enxerga números onde há colapsos, contratos onde há dores. Sua atuação é precisa — um personagem que não é vilão, mas é sintoma de um sistema que exige performance constante. Ele tenta manter o artista produtivo, relevante, vendável. Mas como se vende alguém que já não sabe mais o que está dizendo?


Trey Edward Shults tem uma mão firme para a estética. Isso é inegável. O filme é lindamente filmado, com uma fotografia que reflete os estados internos dos personagens. Luzes vermelhas invadem os quartos, neons piscam como batimentos cardíacos, espelhos se quebram em câmera lenta. Há uma construção visual que lembra tanto “Euphoria” quanto os videoclipes de The Weeknd. E talvez aí esteja a principal questão do filme: ele se parece mais com uma extensão da persona de Abel Tesfaye do que com uma história em si. É como se estivéssemos assistindo a um artista tentando se reinventar diante das câmeras, mas sem saber exatamente para onde está indo.


E isso não seria um problema se o roteiro sustentasse a proposta. Mas a narrativa é dispersa. Longos trechos se repetem em loop emocional, cenas se arrastam em busca de uma poesia que nunca se concretiza. O protagonista passa por visões, delírios e conversas crípticas, mas nada parece avançar. O que era para ser uma viagem de autoconhecimento se transforma, muitas vezes, num desfile de imagens bonitas e falas vazias. A intenção é clara: explorar a crise de identidade de um ídolo pop num mundo saturado. Mas a execução peca pelo excesso de estilo e pela falta de foco dramático.


É curioso, porque quando se pensa em The Weeknd, pensa-se em um artista que sempre soube traduzir dor e desejo em forma de música. Seus álbuns, repletos de ambientações sombrias e batidas hipnóticas, sempre tocaram em temas como vício, solidão, vaidade e culpa. Mas no cinema, essa mesma sensibilidade se esvazia. Tesfaye atua com entrega, mas sua performance parece sempre encapsulada. Ele nunca se deixa romper de verdade. Talvez por falta de experiência como ator, talvez por autoproteção. Seu personagem sofre, mas sofre em silêncio. E o filme, ao invés de nos deixar ouvir esse silêncio, preenche tudo com trilhas e efeitos que abafam qualquer vestígio de verdade.


Hurry Up Tomorrow
“Você não é humano. Você é sobrenatural”, diz Lee para convencer Abel a subir no palco — Foto: Divulgação

Ainda assim, há momentos que sobrevivem à dispersão. Uma cena em que o protagonista dança sozinho, em um corredor escuro, ao som de uma faixa inédita, é pura intensidade. Outra, em que ele chora enquanto assiste vídeos antigos de sua infância, revela uma humanidade que quase se perde no resto da obra. E é nesses respiros que o público se conecta — não com a estrela, mas com o homem. Com o sujeito perdido atrás da máscara.

Jenna Ortega, por sua vez, entrega uma performance sólida, embora o roteiro a utilize mais como símbolo do que como personagem. Sua Anima representa o impulso, o descontrole, a paixão bruta. Mas pouco se sabe sobre ela. E mesmo sua conexão com o protagonista parece surgir mais como necessidade narrativa do que como relação construída. É uma pena, porque Ortega tem talento de sobra para mergulhar em profundidades que o filme sequer explora.


Tecnicamente, “Hurry Up Tomorrow” é impecável. O design de som é detalhista, a montagem é criativa e a trilha — coassinada por Tesfaye e Daniel Lopatin (Oneohtrix Point Never) — é atmosférica e instigante. Mas nenhum desses elementos é suficiente para esconder a fragilidade do roteiro. É como um álbum conceitual com belas faixas, mas sem coesão entre elas. O conjunto não se sustenta.


E isso nos leva à questão central: o que acontece quando um artista decide se retratar no cinema sem se despir verdadeiramente? “Hurry Up Tomorrow” parece querer dizer muitas coisas — sobre fama, sobre isolamento, sobre a perda da voz. Mas esbarra constantemente em sua própria estética. É um filme que se olha no espelho o tempo inteiro, mas evita se encarar nos olhos. E ao fim, o que deveria ser um retrato íntimo se torna um ensaio visual sobre alguém que ainda não sabe o que quer mostrar.


Não há dúvida de que Abel Tesfaye é um criador talentoso. Sua presença no cinema é bem-vinda, e seu desejo de contar histórias além da música merece ser respeitado. Mas talvez “Hurry Up Tomorrow” tenha chegado cedo demais, antes que ele próprio soubesse o que queria contar. Como estreia dramática, o filme é mais um esboço do que uma obra acabada. Uma promessa que ainda precisa de amadurecimento para se cumprir.


Porque o cinema, diferente da música, não perdoa o vazio entre uma nota e outra. Ele exige não só que você se exponha, mas que você permita ser visto sem os efeitos, sem os filtros, sem a trilha perfeita. E é aí que a verdadeira arte começa — no silêncio desconfortável que vem antes da próxima fala. Ou, no caso de um músico sem voz, antes do próximo grito.


NOTA: ⭐⭐⭐ (4/5)

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