O caminho possível no encontro entre a alta-costura francesa e a moda regional brasileira
- Renata Freitas
- há 3 dias
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É certo que aqueles que trabalham ou se interessam por desfiles de Moda, em sua complexidade histórica e artística, já ouviram falar da Semana de Alta-costura de Paris e até de suas rígidas regras de participação. Hoje, poucas Maisons integram o hall de produtores de Alta-costura, localizadas em um quarteirão de Paris que simbolizam o ápice do luxo em Moda. Mas, a minha surpresa foi descobrir que, em sua origem, havia mais de 200 costureiros devidamente reconhecidos nesta modalidade. Estudando sobre o tema, entendi a origem política deste evento, intrínseco ao ofício do costureiro e foi aqui que consegui, em algum nível, relacionar com a minha história na costura e no trabalho com Moda, na defesa da costura e da produção de moda como Arte e trabalho essencial, já que somos até obrigados por lei a usar roupas.
Para entender as possíveis relações entre a Alta-costura fundada na França por costureiros e a produção de moda regional tradicional brasileira, para além das diferenças entre o elitismo euroupeu e a tradição artesanal brasileira, trago um breve contexto histórico. A alta-costura nasceu com Charles Frederick Worth, um costureiro inglês que se estabeleceu em Paris na década de 1850. Ele foi o primeiro a assinar suas criações como um artista e a apresentar coleções com modelos desfilando para clientes, revolucionando a moda. Seu ateliê, Maison Worth, atendia a elite europeia, incluindo a imperatriz Eugénie, esposa de Napoleão III. A partir daí, a alta-costura se consolidou como um sistema exclusivo de criação de moda, com peças feitas sob medida para uma clientela seletíssima.

Em 1868, foi criada a Chambre Syndicale de la Couture Parisienne, uma organização para regulamentar a alta-costura, garantindo padrões de qualidade e exclusividade. O sindicato teve um papel crucial na proteção da moda francesa, especialmente em momentos de crise, como durante as guerras mundiais. Ao longo dos anos, o sindicato impôs regras rígidas para que uma marca pudesse ser considerada de alta-costura, incluindo ter um ateliê em Paris com pelo menos 20 artesãos, criar coleções exclusivas feitas sob medida, apresentar, no mínimo, 50 looks por coleção, duas vezes ao ano e, uma exigência que nos aproxima, todas as peças feitas à mão. Durante a Segunda Guerra Mundial, o setor sofreu um baque, com muitas casas fechando. Porém, após o conflito, a alta-costura voltou a florescer, com a ajuda de nomes como Christian Dior.
Trata-se de um sistema hierárquico, elitista e eurocêntrico, que associa moda a luxo, exclusividade e centralização em grandes capitais. Em contrapartida, no Brasil, comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e rurais produzem moda há séculos com base em técnicas coletivas e conhecimentos tradicionais. Não falta exemplos de nossa complexidade cultural e artística, falta nos livrarmos do complexo de inferioridade instaurado pelos processos colonizadores e reconhecermos nossa importância, como possibilidade de um novo paradigma cultural-artístico de um povo diverso, que nasceu desse novo país chamado Brasil.
Desfile de Outono/inverno 2025-2026 da marca Lino VillaVentura (reprodução/Instagram @linovillaventura)
As rendeiras do Nordeste fazem renda de bilro, labirinto, frivolité e outras técnicas, geralmente em redes de mulheres. A produção é lenta, manual e carrega história, afeto e herança ancestral. Preservam saberes que não se encaixam no padrão industrial, mas possuem valor artístico comparável à alta-costura. As artesãs e bordadeiras se utilizam de técnicas como crochê, tricô, ponto cruz e bordado livre. Muitas vezes trabalham de forma coletiva e em cooperativas. Já, os povos indígenas produzem moda com fibras naturais, sementes, tingimentos orgânicos, pinturas corporais e cocares, e protagonizam um importante movimento para a moda brasileira, em um gesto generoso de dividir seus saberes, atualizando-os com referências mais contemporâneas com a capacidade de internacionalização, inclusive, e levando para espaços que poderiam parecer, ou já foram, inalcançáveis. A moda aqui é expressão espiritual e cosmológica, não apenas estética ou comercial, mas complexa e tradicional, bem longe dos estereótipos folclóricos que aprendemos na escola.
Enquanto a Alta-costura francesa se apresenta como individualizada e assinada, institucionalizada por um sindicato, feita sob medida para a elite e de muitas regras rígidas, a moda regional brasileira só acontece coletivamente, baseada em herança e comunidade, transmitida oralmente ou por vivência prática, feita sob demanda ou tradição local, associada à resistência cultural e ancestralidade, é flexível, adaptável e de muita identidade. Enquanto a alta-costura foi usada como instrumento de poder colonial, simbólico e de pertencimento social pelo acesso à exclusividade através do selo da assinatura autoral e valorização do tempo como luxo, a moda regional brasileira ainda luta por visibilidade e reconhecimento autoral, justa remuneração, proteção de saberes contra apropriação cultural e valorização do tempo do fazer manual, na recuperação desses processos violentas de apagamento de memórias e identidades. Apesar das grandes diferenças, podemos identificar pontos de convergência e potência, ambas são moda artesanal, feita à mão, com tempo e atenção, celebram a exclusividade e a complexidade técnica e geram pertencimento e identidade, mas em contextos distintos. Muitas comunidades brasileiras hoje estão sendo inseridas em circuitos de moda autoral e sustentável, que valorizam o fazer manual, um luxo ancestral que começa a ganhar reconhecimento.

Novos diálogos se mostram possíveis para uma moda decolonial e a busca por um luxo afetivo. Com o crescimento das discussões sobre sustentabilidade, decolonialidade e justiça social, vemos nascer um novo espaço onde a alta-costura contemporânea começa a se reconectar com o artesanal como expressão de valor atemporal. Os saberes tradicionais ganham espaço em galerias, semanas de moda e colaborações criativas sem serem folclorizados e o conceito de luxo se expande, não é mais o exclusivo europeu, mas o que é raro, significativo, conectado com saber e com afeto.
Catarina Mina, marca cearense que trabalha com artesãs do crochê e bordado em Fortaleza e comunidades do interior. Foi pioneira em transparência de custos, expondo o custo dos produtos em seu site, e resgata o valor do feito à mão como luxo e resistência. A Nannacay marca social de acessórios, que atua com artesãs no Brasil, Peru e Bolívia, desenvolve bolsas, chapéus e objetos com fibras naturais e técnicas manuais, incentivando o desenvolvimento de líderes artesãs e fortalece o comércio justo. Além de projetos que unem a moda e justiça social, como o Instituto Proeza, que atua com rendeiras e bordadeiras do agreste alagoano e faz parcerias com marcas como Handred e Farm, enxergando o bordado como linguagem poética e política das mulheres do sertão. E a Rede Asta, rede nacional de produção artesanal com impacto social. Capacita grupos de artesãos e os conecta ao mercado de moda e design, trabalhando com grandes empresas, como Natura, Renner e Adidas.
Desfile de novos estilistas na 55ª edição da Casa de Criadores (reprodução/Instagram @casadecriadores)
A alta-costura e a moda tradicional brasileira operam em paradigmas distintos, mas podem dialogar e se enriquecer mutuamente, desde que haja respeito, valorização e escuta. Muitas marcas contemporâneas estão buscando esse caminho de forma ética e colaborativa, aproximando o prestígio da moda de luxo dos saberes locais. Ouso dizer que já aprendemos o que precisávamos com a produção de moda europeia, agora estamos na posição de vanguarda na renovação dessas produções culturais e artísticas. E, o que não faltam, são exemplos bem sucedidos nesse movimento. Temos uma geração de grandes nomes da moda que unem essas duas perspectivas e representam internacionalmente nosso país e representam o potencial da arte brasileira, como Maurício Duarte, Gustavo Silvestre, Isa Isaac Silva, Airon Martin, Lino Ventura, Marina Bitu e tantos outros novos taletos que se apresentam no projeto Casa de Criadores e outras iniciativas que mostram o quanto também temos o que ensinar quando pensamos na construção técnica, conceitual, prática, estética e filosófica dessa produção cultural que chamamos Moda. Não ficamos para trás em nenhum aspecto e nossa diversidade só a torna mais interessante.
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