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O racismo à mesa e o Brasil que se recusa a se olhar no espelho

  • Foto do escritor: Ana Soáres
    Ana Soáres
  • 3 de jul.
  • 5 min de leitura

Time i Awaete Assurini do Xingu, artista e líder indígena do Pará, veio ao Rio de Janeiro receber um prêmio do Governo Federal. Saiu de um restaurante na Barra da Tijuca com a dignidade ferida e o passado colonial brasileiro cuspido de volta no prato.


Time i Awaete Assurini do Xingu
Time i Awaete Assurini do Xingu e Carla Romano - Arquivo pessoal

Artista indígena é humilhado em restaurante do Rio ao receber prêmio do Governo Federal — e escancara o que o Brasil ainda se recusa a engolir: o racismo estrutural contra povos originários, mesmo em pleno século XXI.

Quando o racismo não vem no prato, vem na voz de quem serve

No dia 26 de junho de 2025, uma quarta-feira comum, quente como tantas no Rio de Janeiro, o artista, pesquisador e líder indígena Time i Awaete Assurini do Xingu, presidente do Instituto Janeraka, em temporada na cidade maravilhosa, não a passeio, mas a trabalho: veio receber o Prêmio Cunhambebe Tupinambá, concedido pela Funai e pelo Ministério da Cultura, em reconhecimento à sua luta pela decolonização dos acervos indígenas e pela reconstrução simbólica e material do Museu Nacional.

O que deveria ser um dia de celebração virou um trauma.

Ao lado de sua companheira, a produtora cultural Carla Romano, Time i foi almoçar no restaurante Frontera, na Barra da Tijuca, bairro nobre da Zona Oeste carioca. O que receberam, porém, não foi apenas comida. Foi escárnio.

"Índio do pica-pau", "índio de madeira", “índio chique que agora come na Barra”, disse o churrasqueiro do restaurante, enquanto servia o artista — sem sequer imaginar que sua violência verbal se tornaria símbolo de um Brasil que, embora tente maquiar seus preconceitos, continua vomitando a mesma lógica colonial de séculos atrás.

Da caricatura à humilhação: o velho Brasil em novo cenário

“Só faltou ele fazer ‘huuuu’ pra mim”, relatou Time i, visivelmente abalado. A frase, dita com tristeza, carrega camadas de dor, memória ancestral e um tipo de violência que não deixa marcas visíveis, mas corrompe a dignidade.

Carla, testemunha da cena, confrontou o agressor:

“Racismo é crime. E o senhor deveria ter outra postura, principalmente no seu local de trabalho.”Ele respondeu: “O que você tem a ver com isso?”
Arquivo pessoal
Arquivo pessoal

O churrasqueiro tentou justificar o injustificável: disse que sua bisavó era indígena. Carla devolveu:

“Por isso mesmo, deveria respeitar sua ancestralidade.”

Mas o respeito não foi servido naquela tarde.

Quem é Time i: o sobrevivente que veio cobrar justiça

Nascido na aldeia em Altamira, no Pará, Time i é sobrevivente direto do genocídio de seu povo, os Assurini do Xingu, massacrado durante a ditadura militar. Seu trabalho hoje é uma ponte viva entre as raízes profundas da floresta e os salões do poder.

Sua luta não é por vaidade. É por memória, reparação e permanência. Ele veio ao Rio reivindicar o direito à reconstrução de sua história, enterrada nas reservas técnicas dos museus e apagada pela história oficial.

Cortesia não apaga violência

Após a cena no restaurante, uma funcionária, apresentada como gerente, demonstrou empatia: pediu desculpas, ofereceu cortesia na conta e sobremesa. Mas os gestos — ainda que educados — eram superficiais. E a estrutura do racismo, mais profunda.

O casal pediu os dados do agressor e das testemunhas para registrar a denúncia. Foi quando a face institucional da omissão apareceu: a gerente foi substituída por um homem que se apresentou como gerente geral e prometeu ajudar — mas logo começou a apagar mensagens e sumir com informações.

“Agiram de má fé. Primeiro forneceram os dados, depois apagaram tudo”, disse Carla.

Disque 100 que não atende, delegacia que não responde

A segunda violência veio da burocracia do Estado. Sem celulares no momento da agressão, o casal não conseguiu registrar imagens. Mesmo assim, tentaram denunciar o caso.

Ligaram para o Disque 100: a chamada caía. Procuraram o número do Decradi-RJ: “ligação não pode ser completada”. Foi graças à orientação de uma jornalista que conseguiram registrar o protocolo pelo canal 1746 da prefeitura, posteriormente encaminhado à Delegacia de Crimes Raciais.

“Eu não imaginava que seria tão difícil denunciar oficialmente”, lamentou Time i.“Casos como esses são fundamentais para que as diversas faces do racismo sejam decolonizadas e as relações com as ancestralidades, regeneradas.”

O racismo contra indígenas em números

Segundo o relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), em 2023 foram registradas:

  • 1.192 ocorrências de racismo e discriminação

  • 241 casos de violência física em áreas urbanas

  • 16 assassinatos com motivação étnica

O que essas estatísticas mostram é que a presença indígena na cidade continua sendo tratada como invasão — e não como existência.

"Não estamos no século XVI, mas o Brasil ainda age como se estivesse"

Essa frase de Sérgio Buarque de Holanda, frequentemente associada ao livro "Raízes do Brasil", e que embora não sejam exatamente essas suas palavras, a ideia central expressa na frase resume uma das principais análises do autor sobre a formação da sociedade brasileira e suas relações com o passado colonial. Porque é exatamente isso que vemos: o racismo contra os povos originários é tratado como folclore, piada, ou exceção. Mas é cotidiano. Se não vem com armas, vem com piadinhas. Se não vem no campo, vem na cidade. Se não fere o corpo, machuca a alma.

Time i não foi “vítima de uma brincadeira infeliz”. Ele foi alvo de um sistema que permite, protege e silencia violências assim — porque ainda não aceitou que o indígena contemporâneo não é mais o que a branquitude espera que ele seja.

E se fosse um branco vestido de cocar?

A pergunta incomoda. Mas é necessária. Porque o Brasil “gourmetiza” a cultura indígena em festivais, na estética, no Carnaval. Mas recusa o indígena real, que ocupa espaço, fala por si, questiona, come ao lado.

Por que a imagem do indígena só é aceita se for silenciosa, decorativa ou distante?

Que país é esse que celebra a cultura indígena, mas cala sua voz?

Enquanto celebramos os 200 anos da independência, cabe perguntar: de que independência estamos falando? Porque um país que não garante o direito básico de **existir com dignidade a um de seus cidadãos mais antigos — e mais silenciados — não pode se considerar moderno, justo ou democrático.

Para não esquecer, para não calar

Essa matéria não é sobre um almoço. É sobre um sistema que tenta, todos os dias, matar a autoestima e a presença dos povos originários nas cidades. É sobre a omissão cúmplice de empresas, o silêncio das instituições, e a indiferença que machuca mais do que o preconceito escancarado.

Time i Assurini é um corpo presente de uma história que o Brasil insiste em enterrar. Mas ele está aqui. Comendo, falando, denunciando, existindo.

Refletindo:

O verdadeiro atraso do Brasil não está nos povos indígenas e sua relação com a floresta — o verdadeiro atraso está na cabeça de quem ainda não aprendeu a respeitar a diversidade, a presença e os direitos dos indígenas na sociedade.


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