O silêncio entre os lençóis: quando o prazer feminino ainda é tabu
- Aretha Hercovitch Carrão
- 30 de jul.
- 4 min de leitura
“Sexo bom é quando as duas pessoas gozam, né? Pena que isso ainda é exceção pra muita mulher.”
Essa frase, dita por Lana*, 32 anos, consultora de marketing, durante nossa conversa por videochamada, resumia uma frustração que vai além de uma experiência pessoal: ela expõe um abismo silencioso entre expectativas, realidades e direitos — o gap do prazer feminino.

Celebrado no próximo dia 31 de julho, o Dia do Orgasmo é muito mais do que uma data provocativa ou “engraçadinha”. É uma convocação urgente a olhar para um dado que incomoda, entristece e denuncia: apenas 24% das brasileiras afirmam atingir o clímax em todas as relações sexuais, segundo a mais recente Global Sex Survey, publicada pela Durex em 2024. A pesquisa entrevistou cerca de 30 mil pessoas em 36 países — e os números escancararam um cenário global de desigualdade íntima. Entre homens brasileiros, 76% dizem chegar ao orgasmo com regularidade. A disparidade é brutal.
Entre o corpo e o constrangimento: o prazer feminino negado
O que impede 3 em cada 4 mulheres brasileiras de viver o orgasmo como parte constante de sua sexualidade? A resposta não é simples — e tampouco é nova. Vai da educação sexual precária à construção sociocultural do corpo feminino como objeto do outro. Vai da culpa à vergonha. Do silêncio ao desconhecimento.
“Durante muito tempo, eu achava que precisava fingir. Que se eu não gozasse rápido, era porque tinha algo de errado comigo. Então eu me adaptava ao ritmo dele e sorria depois, pra não parecer fria. Levei anos pra entender que prazer também é meu direito”, desabafa Luiza*, 27 anos, produtora cultural.
A historiadora e pesquisadora em gênero e sexualidade, Dra. Camila Rezende (UFRJ), aponta que “o prazer feminino foi sistematicamente suprimido na história da sexualidade ocidental. Desde a medicalização da histeria até a hipersexualização racializada, há um percurso de controle sobre o corpo das mulheres. O orgasmo, nesse contexto, vira algo subversivo: é quando a mulher vive o sexo para si — e não para o outro”.
Os números não mentem — e as consequências também não
A mesma pesquisa da Durex revelou que, entre as mulheres que não chegam ao orgasmo, 54% apontam a dificuldade de comunicar o que gostam, enquanto 42% relatam vergonha do próprio corpo. Um quarto sequer sabe com clareza o que estimula seu prazer.
Essa ausência de prazer tem impacto direto na saúde mental, autoestima, qualidade dos relacionamentos e até na produtividade. “Orgasmo não é luxo. É parte do bem-estar integral. Quando a mulher se desconecta do próprio corpo, isso reverbera em outras áreas da vida. E mais grave ainda: quando ela acha que não merece mais que isso”, comenta a psicóloga e terapeuta sexual Débora Nunes, do Instituto Brasileiro de Sexualidade.
Lubrificantes, vibradores e outras ferramentas de empoderamento íntimo
Ainda hoje, palavras como masturbação, lubrificante e vibrador carregam estigmas em boa parte das conversas — e dos lares. Muitos desses recursos, essenciais para o conforto e o prazer, são tratados com desdém ou desinformação.
“O lubrificante é um aliado da saúde íntima. Ele reduz o atrito, facilita a penetração e amplia as possibilidades de prazer. Mas há quem veja como sinal de falha, de que ‘ela não estava excitada o suficiente’. Isso revela um analfabetismo sexual grave”, alerta Débora.
De olho nessa lacuna, o mercado erótico passou a investir com mais foco na experiência feminina. A marca Jontex, por exemplo, lançou recentemente a linha Intense, com camisinhas e géis com efeitos de vibração, calor e resfriamento, voltados especialmente para estimular o orgasmo feminino. Um estudo interno da empresa mostrou que 80% das usuárias chegaram ao clímax usando o produto.
Para André Mendes, Head de Intimate Wellness na Reckitt, “falar sobre prazer feminino não é tendência nem provocação: é saúde, igualdade e justiça nas relações íntimas”.
O que está por trás do gap do orgasmo?
Desigualdade de gênero: Relações ainda centradas no prazer masculino.
Falta de diálogo: Medo ou vergonha de expressar o que se deseja.
Desinformação: Desconhecimento sobre anatomia e estímulos.
Culpabilização feminina: Vergonha do corpo, do desejo, do orgasmo.
Educação sexual falha: Tanto na escola quanto em casa.
Onde começa a revolução? Na conversa
Não é à toa que movimentos feministas há décadas reforçam a importância do autoconhecimento corporal e do direito ao prazer. A escritora e filósofa bell hooks já dizia: “O amor-próprio começa pelo corpo. Pelo respeito e pela escuta que damos a ele”.
No Brasil, iniciativas como o projeto Ponto G – Gênero, Gozos e Gurias promovem rodas de conversa e oficinas sobre prazer e autonomia. Em paralelo, perfis nas redes como o @julia.gianerinni e @shareyoursx têm ganhado espaço desmistificando o tema com linguagem acessível e humor — ferramentas fundamentais para quebrar o gelo e educar.
“Antes de ensinar alguém como nos dar prazer, precisamos aprender a sentir sem culpa. A masturbação, por exemplo, é uma das formas mais potentes de autoconhecimento e autoestima”, diz a criadora de conteúdo e educadora sexual Nathalia Ribeiro, 34 anos.
O orgasmo como ato político
Falar sobre orgasmo feminino é, sim, uma questão política. É afirmar que o prazer da mulher não pode ser periférico, não pode ser bônus, não pode ser calado. É reconhecer que há um legado de silenciamento e que ele só será rompido quando o prazer for incluído em todas as esferas da vida: da cama ao currículo escolar.
Por isso, neste 31 de julho — e em todos os outros dias — que a pergunta não seja “por que ela não gozou?”, mas sim: que mundo ainda estamos construindo, quando metade da população não vive o prazer como parte legítima da sua humanidade?
Porque gozar, para uma mulher, ainda é um gesto de coragem.
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