Pequena África: onde o Rio de Janeiro pulsa em tambor, fé e memória
- Ana Soáres
- 20 de jun.
- 4 min de leitura
No coração do centro carioca, um circuito de ancestralidade negra resgata histórias soterradas e transforma ruínas em monumentos vivos. A Revista Pàhnorama mergulha na Pequena África para provar que o sabor da resistência também se cozinha com samba, feijão e dignidade.

A poucos passos do burburinho turístico da Praça Mauá, há um território que sussurra verdades que o Brasil ainda hesita em escutar. Entre vielas históricas, cheiros de dendê, escadarias ancestrais e batuques no entardecer, vive a Pequena África — não como atração folclórica, mas como uma zona de memória, dor e celebração. Este não é um passeio comum. É um rito. Um reencontro com o que fomos ensinados a esquecer.
O que é a Pequena África?
A Pequena África é um território simbólico e geográfico no Centro do Rio de Janeiro, onde se concentram marcos históricos da cultura afro-brasileira: Cais do Valongo, Pedra do Sal, Cemitério dos Pretos Novos, Casa da Tia Ciata, entre outros.
Ali, no coração da cidade, pulsa uma memória viva dos mais de um milhão de africanos escravizados que desembarcaram no Brasil. Mais do que museus, os espaços que compõem o circuito são feridas abertas e, ao mesmo tempo, berços de resistência.
1. Cais do Valongo

O chão que grita.
Principal ponto de desembarque de africanos escravizados nas Américas entre 1811 e 1831.
Em 2017, foi reconhecido como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco, o único do tipo relacionado diretamente à diáspora africana no continente.
Por que ir: Pisar no Cais é um ato de escuta. Ouvir o que o Brasil calou.
“Aqui, o que não foi dito, ainda pulsa debaixo da terra.” – frase inscrita em uma das placas do local.
2. Pedra do Sal e Morro da Conceição

Do sal ao samba.
Reduto de religiões de matriz africana, rodas de jongo, candomblé, capoeira e o berço do samba carioca.
Segunda e sexta à noite, a Pedra vira quilombo urbano, com rodas de samba gratuitas e abertas, iluminadas por velas e ancestralidade.
Por que ir: Comer, cantar e resistir — tudo ao mesmo tempo.
Pedra do Sal - Pequena África - Foto Thiago Lara
“Essa pedra guarda os passos de quem construiu a cidade com o próprio corpo.” – comentário de um guia local.
3. Largo de São Francisco da Prainha
Do barroco ao batuque.
Antiga praia da cidade, hoje transformada em praça viva.
No centro, está a estátua da bailarina Mercedes Baptista, pioneira no Theatro Municipal e criadora de uma estética afro-brasileira no balé.
Por que ir: Almoçar num dos bares da região e homenagear a mulher que fez da dança um ato político.
4. Instituto Pretos Novos (IPN)

O museu do silêncio interrompido.
Antigo cemitério de africanos recém-chegados ao Brasil que morriam antes de serem vendidos.
Descoberto em 1996 durante uma reforma domiciliar. Hoje é centro de pesquisa e memória.
Por que ir: Encarar o Brasil de frente. E entender que justiça começa com verdade.
“O que foi soterrado aqui, continua dizendo: eu existi.” – mural na entrada do IPN.
5. MUHCAB – Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira

Ancestralidade em movimento.
Com mais de 2.500 peças no acervo, reúne arte, documentos, esculturas e memória viva da contribuição africana ao Brasil.
Também recebe exposições de artistas contemporâneos e eventos públicos.
Por que ir: Porque memória também se aprende — e se expõe.
6. Casa da Tia Ciata

A cozinha onde o samba nasceu.
Memorial da quituteira e ialorixá Hilária Batista de Almeida, símbolo do samba e da diáspora baiana no Rio.
Realiza visitas guiadas, oficinas de jongo e capoeira, e serve um dos feijões mais simbólicos da cidade: Feijão na Cabaça, cozido em fogo ancestral.
Por que ir: Para provar que a cultura não nasce de editais — ela ferve na panela, dança na rua e reza no quintal.
DICAS PRÁTICAS PARA O PASSEIO
Quando ir: Durante a semana, para visitas guiadas aos museus. À noite, para vivenciar a Pedra do Sal em festa (segundas e sextas).
Como ir: Metrô até a estação Uruguaiana ou VLT até a Parada dos Museus.
Leve: Tênis confortável, garrafinha d’água, mente aberta e coração disposto.
Não vá só para ver. Vá para ouvir. Para sentir. Para lembrar.
Gastronomia: comida como ato político
Ao longo do circuito, você encontra desde quitutes simples (como o bolinho de feijoada da Tia Surica) até moquecas e pratos rituais. Comida aqui não é só sustento: é memória ingerida, identidade compartilhada, ato de afirmação.
“Tudo o que a gente perdeu, a gente recupera com panela, tambor e palavra.” — Mãe Lúcia de Iansã, cozinheira e ialorixá.
O turismo de consciência como caminho para o Brasil inteiro
Visitar a Pequena África é mais do que bater ponto num roteiro cultural. É se permitir caminhar por um país dentro do país. Um Brasil que resistiu em batuque, que criou arte na dor e que cozinha história todos os dias. É onde o Rio reencontra seu útero. E onde o Brasil pode, finalmente, nascer de novo.
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