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Quando a favela cozinha o futuro: o Circuito Favela Gourmet e a disputa pela narrativa da gastronomia no Rio

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    Da Redação
  • há 1 dia
  • 4 min de leitura

Festival reúne 14 restaurantes das favelas cariocas entre 13 e 20 de dezembro, com pratos acessíveis, formação profissional e uma proposta de valorização cultural e econômica dos territórios.


Panino no Bafo do Via Trattoria, queijo mozzarella, rúcula, costela no bafo desfiada e cebola caramelizada. Créditos: Ághata Rakan.
Panino no Bafo do Via Trattoria, queijo mozzarella, rúcula, costela no bafo desfiada e cebola caramelizada. Créditos: Ághata Rank.

Durante décadas, a gastronomia carioca foi contada a partir de mesas distantes da realidade popular. Era preciso atravessar túneis simbólicos e concretos para chegar aos restaurantes celebrados pela crítica. Havia um Brasil invisibilizado atrás dos becos, das vielas e dos aromas que nunca chegavam aos guias gastronômicos. Hoje, esse paradigma começa a ruir. E o que se ergue em seu lugar nasce exatamente de onde a cidade menos esperava que surgisse a revolução.

Entre os dias 13 e 20 de dezembro, 14 restaurantes da Rocinha, Vidigal e Pavão–Pavãozinho–Cantagalo participam de um concurso inédito. O Circuito Favela Gourmet não é apenas um evento. É um manifesto. Uma convocação pública para que o Rio reconheça, finalmente, que sua potência cultural mais autêntica também mora nas comunidades. E que o sabor das favelas é, há muito tempo, um capítulo indispensável da identidade gastronômica brasileira.

A proposta é simples apenas na superfície: escolher os melhores drinques, petiscos e pratos de cada território, com preços acessíveis que variam entre R$ 15 e R$ 50. Mas a potência está nas camadas invisíveis. É sobre memória, pertencimento, circulação de renda e políticas públicas de impacto. É sobre devolver às comunidades o protagonismo que sempre tiveram, mas que historicamente lhes foi negado.

“O visitante não irá apenas consumir um prato. Ele vai conhecer a história do chef, a origem dos ingredientes, a dinâmica do bairro, os desafios e as conquistas que moldam o cotidiano da favela”, diz Renan Monteiro, CEO do Na Favela Turismo.

O tom é de quem entende que a gastronomia pode ser mais do que um prato servido. Pode ser um encontro, uma ponte, um gesto político.

A força econômica que o Rio teima em não enxergar

Turismo comunitário cresce no Brasil a uma velocidade que o Estado ainda não consegue acompanhar. Dados do Ministério do Turismo mostram que experiências culturais e gastronômicas periféricas tiveram um aumento de mais de 60 por cento na busca de viajantes estrangeiros nos últimos três anos. No Rio, a favela é hoje o segundo atrativo mais procurado por turistas internacionais, atrás apenas das praias.

Ainda assim, os territórios populares seguem recebendo menor investimento, menor atenção institucional e quase nenhuma visibilidade na mídia tradicional. É como se a cidade insistisse em tratar seus espaços de maior densidade cultural como notas de rodapé.

O Favela Gourmet confronta essa lógica. A cada prato servido, há um chef que não teve acesso às escolas clássicas de gastronomia, mas que domina com precisão a alquimia dos temperos herdados de gerações. Há pequenos negócios que sustentam famílias. Há circulação de visitantes, criação de novas narrativas e fortalecimento de uma economia que não pode mais ser ignorada.

Quando a comida vira espelho social

A feijoada com caipirinha de gengibre do Bar da Laje, no Vidigal, conversa diretamente com o Torresmo Mirante, da Rocinha. Não apenas pelo sabor, mas pela história. Ambos traduzem um Rio vivo, pulsante, criativo e resistente. Na contramão do estigma, emergem como exemplos de gastronomia de excelência.


Feijoada do Bar da Laje - Créditos: Ághata Rakan.
Feijoada do Bar da Laje - Créditos: Ághata Rank.

Durante oito dias, visitantes vão caminhar por vielas que guardam histórias de resistência. Vão sentar-se em mesas onde a comida é expressão de identidade. Vão provar criações exclusivas — memórias transformadas em receita.

O circuito funciona como um encontro direto entre visitante e anfitrião, aproximando mundos que, por muito tempo, a cidade manteve separados. E aqui está um dos pontos centrais: deslocar o eixo do olhar. Fazer do território o protagonista. Fazer da comida um rito de passagem para entender o Brasil real.

Circuito Favela Gourmet: Onde cultura, sabor e formação se encontram

O circuito não se limita ao prato. Ele se expande para o Educativo Favela Gourmet, que oferece formação profissional aos participantes por meio de workshops de nomes conceituados da gastronomia e da mixologia, como Regina Tchelly e a Le Cordon Bleu. São cursos, masterclasses e palestras abertas, que qualificam profissionais e ampliam oportunidades.

Cada aula, cada encontro, cada troca é uma forma de construir futuro dentro da própria favela. É formação técnica, mas também é valorização simbólica. É dizer que a gastronomia das comunidades merece o mesmo nível de investimento e respeito que qualquer restaurante da Zona Sul.

O que está em disputa quando se fala de gastronomia

O Favela Gourmet não é apenas um festival. É um reposicionamento político. É a disputa por um lugar que sempre foi nosso. É a quebra definitiva daquela narrativa que dizia que gastronomia de excelência só existe dentro dos salões climatizados do centro expandido da cidade.

O Rio sempre consumiu a favela como paisagem, mas raramente como saber. Está na hora de inverter essa lógica. E o Circuito Favela Gourmet acende exatamente essa discussão.

A pergunta que fica é simples e profunda: se a favela é potência cultural, criativa, gastronômica e turística, por que ainda não ocupa o lugar que merece nas políticas públicas, no investimento privado e nos circuitos de consumo da cidade?

Porque o que se prova na mesa ecoa muito além do sabor

O que está sendo construído nesses oito dias é mais do que uma rota gastronômica. É uma narrativa de pertencimento. É um gesto político. É, sobretudo, uma aposta no futuro. Um futuro onde a gastronomia nasce da comunidade e retorna para ela. Onde território e talento caminham juntos. Onde cozinhar é também resistir, gerar renda, transformar vidas e ampliar horizontes.

O Favela Gourmet é a prova viva de que o Rio nunca foi uma cidade partida. O que sempre faltou foi abrir as portas certas. E agora, pela gastronomia, essas portas começam a ser empurradas com força suficiente para não fecharem mais.

O sabor que vem das favelas é, no fim das contas, o sabor de um país que luta para ser reconhecido por inteiro.

SERVIÇO

Circuito Favela Gourmet

Data: 13 a 20 de dezembro

Preço:Petiscos entre R$ 15 e R$ 35

Pratos principais entre R$ 35 e R$ 50

Comunidades participantes:

Rocinha, Vidigal e Pavão–Pavãozinho–Cantagalo

Realização: 

Experience Business Corporate

Patrocínio: Secretaria de Turismo do Estado do Rio de Janeiro

Produção: Ferraz Produções

Apoio: Campista, Tanqueray Bossa Nova, Smirnoff Ice

Apoio institucional: Na Favela Turismo, Associação de Moradores da Rocinha

Apoio educacional: Le Cordon Bleu, Associação dos Chefs ACFB

Transporte oficial: Brummie Lines

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