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[CRÍTICA] A MAIS PRECIOSA DAS CARGAS (2025): uma animação sobre o amor em tempos de inominável escuridão

  • Foto do escritor: Manu Cárvalho
    Manu Cárvalho
  • 17 de abr.
  • 5 min de leitura

LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

Não é exagero dizer: trata-se de uma das experiências cinematográficas mais emocionantes e significativas dos últimos anos
Não é exagero dizer: trata-se de uma das experiências cinematográficas mais emocionantes e significativas dos últimos anos (Foto: Reprodução / Paris Filmes)

É difícil escrever sobre a guerra. Mais difícil ainda é escrever sobre o Holocausto sem cair em repetições, fetiches históricos ou dramatizações excessivas. Mas em “A Mais Preciosa das Cargas”, o diretor Michel Hazanavicius encontra um caminho poético, devastador e ao mesmo tempo profundamente sensível para abordar um dos capítulos mais sombrios da história da humanidade.


Baseado no livro homônimo de Jean-Claude Grumberg, o filme estreou nos cinemas em 17 de abril de 2025, após causar comoção no Festival de Cannes de 2024, onde concorreu à Palma de Ouro. E não é exagero dizer: trata-se de uma das experiências cinematográficas mais emocionantes e significativas dos últimos anos.


A sinopse que quebra o coração antes mesmo de começar

A história é contada como um conto de fadas sombrio. Em plena Segunda Guerra Mundial, um trem corta as florestas da Polônia, transportando prisioneiros judeus rumo aos campos de extermínio nazistas. Em determinado momento, uma mulher desesperada joga do trem um pacote envolto em panos. Dentro dele, um bebê.


Do outro lado da floresta, um lenhador e sua esposa — pobres, rudes, e aparentemente indiferentes ao que se passa no mundo — encontram a criança. É o início de uma transformação silenciosa, lenta e arrebatadora. Aquele bebê, que poderia ter sido deixado para morrer como tantos outros, torna-se a centelha de algo raro em tempos de guerra: o recomeço da compaixão.


Uma animação para adultos, mas para o coração de todos

Antes de qualquer coisa, é importante dizer: “A Mais Preciosa das Cargas” é uma animação adulta. Não há aqui personagens fofinhos ou finais felizes embalados por canções. A estética lembra livros infantis ilustrados, com traços delicados, movimentos contidos e cenários que evocam o papel, a tinta e o silêncio. Mas essa leveza gráfica contrasta com o peso da narrativa — e é justamente essa dicotomia que a torna tão especial.


O filme não mostra diretamente a violência. Não há sangue, gritos ou soldados em ação. Mas o horror está sempre ali, pairando, implícito. O trem que atravessa a floresta torna-se um símbolo de tudo o que é irrecuperável. E o bebê — a carga mais preciosa — torna-se um símbolo do que ainda pode ser salvo.

“A Mais Preciosa das Cargas” é uma animação adulta.
“A Mais Preciosa das Cargas” é uma animação adulta. (Foto: Reprodução / Omelete)

A narração de Jean-Louis Trintignant: um adeus com ternura

O filme é narrado por ninguém menos que Jean-Louis Trintignant, lendário ator francês que nos deixou em 2022. Este foi seu último trabalho, e ouvir sua voz é como sentar ao lado de um avô sábio que, com tristeza nos olhos, decide contar uma história que jamais deveria ser esquecida.


A narração é feita com pausas, com carinho, com aquela entonação de quem não julga os personagens, mas entende suas dores. É a voz que embala o espectador no início, mas também a que nos fere nos momentos finais. Trintignant transforma o que poderia ser um simples recurso narrativo em um personagem à parte — uma consciência que observa, mas que também sofre.


Alexandre Desplat: música que cura, mas também rasga

A trilha sonora é assinada pelo premiado compositor Alexandre Desplat, e aqui ele entrega uma das composições mais contidas e dolorosas de sua carreira. O piano aparece como quem pede licença. Os violinos sussurram. E há momentos em que o silêncio, pontuado apenas pelo vento ou por um suspiro da floresta, fala mais alto que qualquer nota.


A música nunca tenta manipular. Ela apenas acompanha. É como um cobertor fino num inverno rigoroso: não protege totalmente, mas lembra que ainda há um gesto de cuidado possível.


Animação como linguagem da memória

Visualmente, o filme é uma aula de como a animação pode ser ferramenta poética e política. A escolha por cenários aquarelados, personagens com traços quase rascunhados e paisagens que parecem pinturas inacabadas transforma a tela em um diário de memórias.

Como se estivéssemos lendo um livro de histórias à beira da lareira, mas sabendo que, por trás de cada frase, há uma verdade que o mundo preferiria não encarar.


É difícil não lembrar de "O Túmulo dos Vagalumes", do Studio Ghibli, ou de "Valsa com Bashir", quando pensamos em animações que tratam do horror com estética lírica. Hazanavicius se une a esse seleto grupo ao entender que o traço sutil pode falar sobre dores imensas.

Visualmente, o filme é uma aula de como a animação pode ser ferramenta poética e política.
Visualmente, o filme é uma aula de como a animação pode ser ferramenta poética e política. (Foto: Reprodução / CinePop)

A coragem de humanizar quem não era herói

Um dos maiores méritos do roteiro é não tratar os protagonistas como salvadores iluminados. O lenhador e sua esposa não são bons desde o início. Pelo contrário: eles representam o povo comum, aquele que fechava a janela quando o trem passava, que fingia não ouvir os gritos ao longe. São ignorantes, rudes, um pouco covardes. Mas são humanos. E é justamente por isso que a história emociona.


Ver essas figuras comuns sendo transformadas por um bebê — um ser indefeso, que nem fala, que apenas existe — é uma lição sobre como ainda há espaço para compaixão, mesmo nos lugares mais escuros. A salvação do mundo, sugere o filme, não virá dos grandes heróis. Mas daqueles que, diante de uma criança, escolhem não virar o rosto.


Recepção crítica: lágrimas nos olhos, aplausos contidos

A estreia no Festival de Cannes foi marcada por uma longa ovação de pé. Críticos internacionais classificaram o longa como “uma das mais delicadas recriações do Holocausto já feitas”. O jornal Le Monde descreveu como “um conto que dilacera com poesia”, enquanto o The Guardian pontuou que “Hazanavicius encontra beleza onde só restava silêncio”.


No entanto, parte da crítica também questionou se a escolha por uma estética tão suave não correria o risco de suavizar o horror. Mas o consenso entre os especialistas é claro: o filme não omite a dor — apenas escolhe outra forma de mostrá-la.

É uma lição sobre como ainda há espaço para compaixão, mesmo nos lugares mais escuros
É uma lição sobre como ainda há espaço para compaixão, mesmo nos lugares mais escuros (Foto: Reprodução / Adoro Cinema)

Por que precisamos de filmes como este?

Em tempos em que o discurso de ódio volta a ocupar espaços públicos e o negacionismo histórico ganha vozes cada vez mais estridentes, filmes como "A Mais Preciosa das Cargas" se tornam urgentes. Eles não existem apenas para emocionar. Eles existem para lembrar.

Para alertar. Para provocar.


E o mais bonito: o filme não fala apenas com adultos ou cinéfilos. Ele tem o poder de alcançar jovens, adolescentes, educadores, famílias. É uma narrativa acessível, mas profunda. E isso é raríssimo.


A MAIS PRECIOSA DAS CARGAS: Um presente doloroso, mas necessário

“A Mais Preciosa das Cargas” não é um filme que se esquece. Ele não termina quando os créditos sobem. Ele continua dentro da gente, como um nó na garganta, como um sussurro que diz: “não feche os olhos”. Ele nos lembra que, mesmo nos momentos mais sombrios da história, a empatia é possível.


A animação — como linguagem, como escolha estética, como abraço — transforma essa história em algo ainda maior. Não é apenas uma homenagem às vítimas do Holocausto. É um apelo silencioso para que sejamos melhores. Para que, diante da dor do outro, sejamos como o lenhador e sua esposa — pessoas comuns que, por um instante, escolheram amar.


Nota final: ⭐⭐⭐⭐⭐ (5/5)

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