Como educadores negros estão lutando para transformar o sistema de ensino brasileiro, promovendo a igualdade racial desde a infância
Quando falamos de racismo estrutural no Brasil, é comum que os debates se concentrem em questões econômicas, políticas ou de segurança pública. Mas, para um grupo crescente de educadores negros, o cerne da luta antirracista está nas salas de aula. É ali, no espaço onde as crianças começam a moldar suas percepções de mundo, que a batalha pela desconstrução de preconceitos se intensifica. E para esses profissionais, a missão é clara: transformar a educação em um instrumento de mudança social, promovendo a igualdade racial desde a infância.
O Brasil, com sua história marcada pela escravidão, é o berço de um racismo que se perpetua nas mais diversas instituições, e a escola não é exceção. Conforme o IBGE, 54% da população brasileira se declara negra ou parda. Ainda assim, a maioria dos currículos escolares ignora essa representatividade, refletindo um modelo eurocêntrico que, por décadas, invisibilizou a contribuição dos negros para a construção da sociedade. O desafio, agora, é subverter essa lógica e garantir que as futuras gerações cresçam em um ambiente mais inclusivo e equitativo.
Mas o que significa, na prática, promover uma educação antirracista? Para Luciana Oliveira, pedagoga e professora em uma escola pública da periferia de São Paulo, trata-se de um compromisso diário de ressignificar a história e dar às crianças negras o protagonismo que lhes foi negado por tanto tempo. "É preciso que elas se vejam nos livros, nas histórias, nos exemplos de sucesso. Que entendam que fazem parte de uma trajetória de luta, resistência e vitória", afirma Luciana. Em sua sala de aula, o mês da Consciência Negra não se resume a uma semana de palestras ou atividades simbólicas. Todos os dias, ela apresenta autores, pensadores e heróis negros que foram determinantes para a história do Brasil e do mundo.
A tarefa, contudo, não é simples. A educação brasileira, assim como outras esferas da sociedade, está impregnada de preconceitos sutis, muitas vezes camuflados em práticas pedagógicas que, à primeira vista, parecem inofensivas. Um estudo recente do Instituto Alana apontou que as escolas públicas e privadas do país ainda enfrentam dificuldades em implementar a Lei 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas instituições de ensino básico. Quase 20 anos após a sua promulgação, muitos professores ainda não se sentem preparados para abordar o tema de forma adequada, e os materiais didáticos são escassos ou mal elaborados.
O caminho para a educação antirracista passa, necessariamente, por uma reformulação profunda no treinamento dos professores e na produção de conteúdos que deem conta dessa diversidade. Renata Lima, especialista em políticas educacionais e autora de uma pesquisa sobre práticas pedagógicas inclusivas, defende que a mudança começa com a formação docente. "Não adianta inserir uma ou duas disciplinas no currículo de pedagogia. O combate ao racismo deve ser transversal, abordado em todas as áreas do conhecimento. Desde a matemática até a literatura, tudo pode ser ensinado para promover a inclusão e o respeito à diversidade", explica Renata.
Além disso, iniciativas independentes de educadores e coletivos negros têm se mostrado fundamentais para preencher as lacunas deixadas pelo sistema. O projeto AfroeducAção, por exemplo, criado por um grupo de professores e ativistas em 2017, busca capacitar docentes para o ensino da história e cultura afro-brasileira e promover debates sobre representatividade nas escolas. O grupo oferece workshops, materiais didáticos alternativos e consultorias para escolas que desejam implementar práticas antirracistas em suas metodologias. "Nosso foco é dar ferramentas para que os professores se sintam preparados e, acima de tudo, seguros para lidar com o tema. A ideia é que esse aprendizado transforme não só o conteúdo, mas também a relação dos alunos entre si e com o mundo", afirma uma das fundadoras do projeto, a educadora negra Jurema Silva.
Os impactos dessa revolução silenciosa nas escolas já começam a aparecer. Em uma pesquisa de 2022 realizada pelo Datafolha, 68% dos pais e responsáveis entrevistados disseram acreditar que as escolas devem ter um papel ativo na promoção da igualdade racial. Além disso, 54% dos entrevistados afirmaram que as instituições de ensino frequentadas por seus filhos não abordam questões raciais com a devida profundidade, o que revela uma demanda crescente por mudanças na abordagem pedagógica.
No entanto, a resistência também é real. A implementação de uma educação antirracista enfrenta não apenas barreiras estruturais, como a falta de materiais e recursos, mas também ideológicas. Em muitos casos, o racismo é minimizado ou tratado como um problema "superado", o que impede discussões profundas sobre sua origem e impacto. Luciana Oliveira lembra um episódio em que, ao sugerir a inclusão de um livro de literatura afro-brasileira no currículo de sua escola, foi questionada por colegas sobre a "necessidade" de abordar o tema. "Isso mostra como o racismo ainda é tratado como algo pontual, e não estrutural", comenta.
Apesar desses obstáculos, os educadores antirracistas estão determinados a continuar sua luta. A transformação do sistema de ensino, por mais lenta que seja, é fundamental para o futuro do Brasil. Em um país marcado por desigualdades abissais, é na educação que reside a esperança de um amanhã mais justo. Crianças que crescem em um ambiente escolar que promove a igualdade racial tornam-se adultos mais conscientes, capazes de reconhecer e combater as injustiças sociais que perpetuam o racismo.
O caminho é longo, mas como Jurema Silva afirma, "não estamos apenas formando alunos, estamos formando cidadãos". Cidadãos que, desde cedo, entendem que a diversidade é um valor, e não uma barreira. Cidadãos que reconhecem a importância da história e da cultura negra para o Brasil. E, sobretudo, cidadãos que sabem que a educação é a chave para a construção de um país onde a cor da pele não seja determinante para o sucesso ou fracasso de alguém.
Essa nova geração de educadores negros está plantando as sementes de uma revolução que, embora discreta, tem o poder de transformar não só as escolas, mas também o futuro do Brasil. E é esse futuro, repleto de vozes plurais e histórias diversas, que finalmente começa a se desenhar nas salas de aula do país.
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