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Lei 10.639: Falta de aplicação efetiva nas escolas e desafios para o ensino da cultura afro-brasileira

  • Foto do escritor: Ana Soáres
    Ana Soáres
  • 12 de ago.
  • 3 min de leitura

Quando o ensino da cultura afro-brasileira vira apenas uma data no calendário

Apesar de obrigatória há 20 anos, a Lei 10.639 ainda é aplicada de forma superficial em muitas escolas. Veja dados, vozes e soluções.
Reprodução

O dia que não cabe no ano

Manhã abafada de 20 de novembro, uma Escola Municipal, na Baixada Fluminense do Rio, está enfeitada com cartazes coloridos. Alunos uniformizados recitam versos de Castro Alves, enquanto o som abafado de um atabaque ecoa no pátio. É o Dia da Consciência Negra — a única data em que a cultura afro-brasileira parece ganhar destaque ali.

Na semana seguinte, os cartazes somem. O calendário volta ao normal. E a Lei 10.639/2003, que há mais de 20 anos obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira durante todo o ano letivo, volta a ser letra-morta.

Uma lei que mudou no papel, mas não no chão da escola

Aprovada em 9 de janeiro de 2003, a Lei 10.639 nasceu como resposta histórica a séculos de invisibilização da contribuição negra na formação do Brasil. Determinava que escolas públicas e privadas incluíssem no currículo oficial a temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, transversal às disciplinas, da Educação Infantil ao Ensino Médio.

Duas décadas depois, dados do Instituto Alana e Geledés mostram um retrato desconfortável:

  • 71% das Secretarias Municipais de Educação realizam pouca ou nenhuma ação efetiva para implementar a lei.

  • 53% das redes de ensino restringem-se a atividades pontuais, quase sempre no mês de novembro.

  • 18% não fazem ação alguma para cumprir a legislação.

O que dizem as salas de aula

Em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos, a pesquisadora Lúcia Regina Pereira resumiu o problema:

“A proposta é que se integre no currículo propriamente dito… esta questão tem de deixar de ser uma coisa pontual e festiva.”

No interior de Pernambuco, uma gestora escolar contou, orgulhosa, que sua unidade rompeu esse ciclo.

“Aqui, a lei é viva. Nossas aulas de arte, história e literatura dialogam o ano inteiro com a cultura afro-brasileira. Isso muda a autoestima dos estudantes negros.”

Já em outro município, no Rio de Janeiro, uma professora de História desabafa sob anonimato:

“Recebo os planos prontos da secretaria, mas nada fala sobre a lei. No máximo, me pedem para fazer um mural em novembro. É frustrante.”

Estudantes entre a afirmação e a omissão

Na escola de Olinda que se tornou referência, alunas negras relatam uma transformação pessoal:

“Antes, eu não me via nos livros. Agora, aprendi que minha história não começa na escravidão.”

Mas em muitos outros lugares, estudantes relatam a ausência de referências negras nos conteúdos. Uma aluna do 9º ano em Minas Gerais disse:

“O único momento que falam disso é no Dia da Consciência Negra. Depois, é como se a gente desaparecesse.”

Por que a lei 10.639 empaca?

Especialistas e gestores apontam três barreiras centrais:

  1. Falta de formação docente — Professores não recebem preparo consistente para abordar a temática de forma crítica.

  2. Carência de material didático — Livros e apostilas raramente incluem conteúdos adequados e atualizados.

  3. Ausência de políticas de acompanhamento — Secretarias de Educação não fiscalizam Quando o ensino da cultura afro-brasileira vira apenas uma data no calendário ou monitoram a aplicação real da lei.

Entre o ideal e o real

Há escolas e redes que mostram que é possível fazer diferente: integrar a temática no currículo, dialogar com a comunidade, convidar mestres da cultura popular e intelectuais negros para palestras, e produzir material próprio. Mas essas experiências ainda são ilhas de excelência em um mar de formalidade simbólica.

O preço da omissão

Reduzir a Lei 10.639 a uma ação isolada por ano significa negar aos estudantes a oportunidade de compreender o Brasil para além do mito da democracia racial. Significa também impedir que jovens negros construam referências positivas e que jovens brancos reconheçam e respeitem essa herança.

O que está em jogo

Mais que uma exigência curricular, a lei é uma política de reparação histórica. Quando aplicada de forma crítica e contínua, transforma não só a sala de aula, mas como o país se percebe. Quando relegada a um evento anual, serve apenas para alimentar relatórios e estatísticas que mascaram a omissão.

E fica a pergunta: que futuro pode ter um país que trata a própria história como um feriado opcional?

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