Como cineastas negros estão criando um novo espaço de visibilidade e contando histórias que desafiam estereótipos
Era uma tarde quente no Rio de Janeiro quando André Novais Oliveira finalizou sua última cena. A produção não contava com orçamentos grandiosos nem patrocinadores de peso, mas carregava algo muito mais forte: a verdade de uma narrativa até então esquecida. O cinema negro no Brasil, por décadas mantido à margem, agora ocupa um lugar inegável na indústria audiovisual. E com ele, uma nova onda de histórias surge nas telas, trazendo à luz a experiência negra no país, de maneira inédita e transformadora.
Nos últimos anos, temos assistido a um crescimento significativo de cineastas negros que não apenas conquistam espaço, mas também ressignificam o que entendemos por representatividade. Eles não estão simplesmente criando filmes, estão construindo uma plataforma onde vozes historicamente silenciadas podem ecoar. A força dessa nova leva de cineastas está em retratar a vida negra com profundidade, fugindo dos estereótipos que, por tanto tempo, dominaram o imaginário coletivo.
O cinema sempre foi um espelho da sociedade. Desde sua criação, no final do século XIX, as câmeras capturaram realidades, fantasias e todas as nuances entre elas. No entanto, por mais de 100 anos, o cinema brasileiro perpetuou uma visão estreita e, muitas vezes, preconceituosa da população negra. Filmes icônicos da nossa cinematografia tratavam personagens negros como secundários, limitando-os a papéis estigmatizados — o serviçal, o bandido, a figura exótica. E isso, inevitavelmente, impactou gerações de brasileiros, criando uma lacuna na forma como a experiência negra era representada na tela.
Mas o cenário está mudando. Cineastas como André Novais Oliveira, com sua abordagem intimista, e Viviane Ferreira, diretora de "Um Dia com Jerusa", estão ajudando a reescrever essa narrativa. Eles trazem não apenas novas histórias, mas também novos olhares sobre o que significa ser negro no Brasil contemporâneo. Ferreira, em particular, destaca-se como uma das poucas diretoras negras no país e, com sua obra, rompe com a tradição masculina e branca que sempre dominou a direção cinematográfica.
"A representatividade importa, sim, mas é mais do que isso. Trata-se de contar histórias que fazem parte de uma vivência real, sem filtros", afirma Viviane em uma de suas recentes entrevistas. E ela tem razão. Quando assistimos a uma obra como "Temporada", de André Novais, não estamos apenas observando um filme. Estamos sendo levados para uma experiência cotidiana, palpável, onde a vida negra é retratada com humanidade e nuance.
Segundo dados do IBGE, cerca de 56% da população brasileira se autodeclara negra ou parda. No entanto, durante muito tempo, essa maioria foi invisível no cinema nacional. Uma pesquisa da Ancine em 2021 revelou que apenas 2,1% dos filmes produzidos no Brasil entre 2009 e 2018 tinham diretores negros. E isso não reflete apenas uma ausência de profissionais; reflete, sobretudo, uma exclusão histórica de vozes, histórias e perspectivas que merecem ser contadas.
O movimento de cineastas negros no Brasil surge em um momento crítico, em que o país enfrenta tensões raciais e políticas que tornam ainda mais urgente a necessidade de uma representatividade verdadeira. O cinema, como qualquer forma de arte, tem o poder de criar empatia, de permitir que o espectador se veja no outro, de abrir diálogos. Ao trazer histórias negras, os novos cineastas estão proporcionando uma espécie de cura cultural — um processo em que as feridas do passado colonial, da escravidão, começam a ser revisitadas e, quem sabe, saradas.
Mas o caminho não é fácil. A dificuldade de financiamento é uma barreira constante para muitos desses profissionais. O próprio André Novais, em entrevistas, já mencionou as complicações que enfrentou para conseguir apoio financeiro para suas produções. "Fazer cinema no Brasil já é difícil. Fazer cinema sendo negro é duas vezes mais complicado", diz ele. Esse cenário reflete a exclusão que também existe nas esferas de patrocínio e apoio, onde os projetos de realizadores negros ainda são vistos como de nicho ou, pior, como menos rentáveis.
Viviane Ferreira, ao mesmo tempo, compartilha uma visão otimista. Para ela, a presença de novos cineastas negros nas grandes premiações e festivais de cinema nacionais e internacionais é um sinal de que as coisas estão mudando. "Quando vemos filmes como ‘Bacurau’ sendo aplaudidos em Cannes e ‘Medida Provisória’ de Lázaro Ramos ganhando espaço, sabemos que estamos começando a conquistar terreno", diz Ferreira. E é verdade. Essas obras têm levado a discussão sobre raça, identidade e futuro a um nível que o cinema brasileiro raramente explorou.
Mais do que o reconhecimento da crítica, o impacto dessas narrativas é sentido no público. Um levantamento do Datafolha revelou que 74% dos espectadores acreditam que o cinema é uma ferramenta importante para discutir racismo e promover mudanças sociais. Esse dado reflete o poder da sétima arte como veículo de transformação, capaz de mexer com as estruturas sociais e culturais de um país como o Brasil, tão marcado pela desigualdade racial.
É essa revolução que o novo cinema negro está promovendo. Um movimento que não busca apenas lugar à mesa, mas que se propõe a construir novas mesas, com novos protagonistas, novas histórias e novos olhares. A representatividade no audiovisual brasileiro não é apenas uma moda passageira. É uma necessidade urgente, uma transformação cultural que, apesar de silenciosa, carrega em si a força de séculos de resistência e luta.
Esses cineastas negros estão desafiando a realidade das coisas como são e, ao fazê-lo, estão criando um cinema que é mais diverso, mais inclusivo e, acima de tudo, mais brasileiro. O futuro do cinema nacional, assim como o futuro do país, pertence a eles — e a todos nós que, com eles, escolhemos sonhar um Brasil mais justo, mais igual e mais verdadeiro.
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